domingo, 29 de setembro de 2013

"A Mediocridade anda em bando, e a Democracia ama os Medíocres"




"A democracia é um regime que vive entre dois valores essenciais: liberdade e igualdade, segundo Tocqueville. E esse convívio não é fácil. Entre os dois, habita o que eu chamo de sensibilidade democrática, um conjunto de características que vão além do mero debate acerca das instituições democráticas, como poderes públicos, partidos, eleições, plesbicitos etc.
Não se trata de falar mal da democracia, ela é o regime político “menos ruim”. Até onde os especialistas podem falar, precisamos viver em grupos para sobreviver, mas para isso fazemos concessões ao grupo em troca de alguma segurança. Nesse sentido sou hobbesiano: o homem é o lobo do homem e o estado da natureza (grosso modo, a maneira pré-político de vida, uma espécie de vida em bando do neolítico) devia ser bem péssimo.
Por isso precisamos de organização e poder. Dentro desse quadro de ausência de opção de vida sem Estado político, a democracia é o menos pior porque procura institucionalizar as tensões da vida em grupo, distribuindo os poderes de modo menos concentrado.
A tentativa de definir a democracia “como regime de direitos” é ridícula porque não existem direitos sem deveres, por isso a idéia de que os piolhos ou frangos tenham direitos começa a aparecer quando separamos direitos de sua contrapartida anterior, os deveres. A praga PC (politicamente correto) costuma fazer essa separação por motivos de marketing e ignorância filosófica.
Mas, independente de a democracia ser nossa melhor opção, há problemas nela, claro. Como dizia Tocqueville, a democracia tem impactos específicos nos humores, temperamentos, hábitos e costumes. O que chamo de sensibilidade democrática é parte desses impactos.
Uma coisa que salta aos olhos é a tentativa de chamar qualquer um que critique a democracia de antidemocrático. A sensibilidade democrática é “dolorida”, qualquer coisa ela grita. Mas não me engano com ela: esse “grito” nada mais é do que a tentativa de impedir críticas que reduzem a vocação também tirânica que a democracia tem como regime “do povo”.
O “povo” é sempre opressor, Rosseau e Marx são dois mentirosos. Mesmo na Bíblia, quando os profetas de Israel criticavam os poderosos, também criticavam os poderosos, também criticavam o “povo”, que nunca foi herói de nada. Aliás, o risco da tirania do “povo”! já tinha sido apontado pelo próprio Tocqueville. As duas formas mais evidentes de tirania são a da maioria e a do dinheiro (criador de uma “aristocracia do dinheiro” em lugar de sangue).
Para evitar esse risco tirânico, precisamos cuidar dos mecanismos de “pesos e contrapesos” da democracia (suas instituições em conflito, mídia, instâncias de razão pública, como escolas, universidades, a própria mídia, tribunais, etc.) e combater a tendência de reduzir a democracia a um regime da “vontade popular” ou um regime “do povo”. O povo é sempre opressor. Quando aparece politicamente, é para quebrar coisas.
O povo adere fácil e descaradamente (como aderiu nos séculos 19 e 20) a toda forma de totalitarismo. Se der comida, casa e hospital, o povo faz qualquer coisa que você pedir. Confiar nos bons modos de um leão à mesa. Só mentirosos e ignorantes tem orgasmos políticos com o “povo”.
Mas, voltando a liberdade x igualdade, principal tensão na democracia: segundo Tocqueville, não há como evitar essa tensão porque ambas são valores de raiz da democracia. Quando você dá mais espaço para a liberdade, a tendência é que a democracia acentue as diferenças entre as pessoas e os grupos que nela vivem. Mas a liberdade é a chave da capacidade criativa e empreendedora do homem.
Quando você acentua a igualdade, a democracia ganha em nivelamento e perde em criatividade e geração de abundância para as pessoas. O politicamente correto é um caso clássico de censura à liberdade de pensamento, por isso, sob ele, o pensamento público fica pobre e repetitivo, por isso medíocre e covarde.
Quando se acentua a igualdade na democracia, amplia-se a mediocridade, porque os covardes temem a liberdade. Por exemplo, os regimes marxistas, assim como os fascistas de direita (os marxistas são os fascistas de esquerda), reduziram o pensamento e a vida das pessoas ao nível de um formigueiro. Mas a sensibilidade democrática sofre quando se aponta a relação entre culto da igualdade e mediocridade. Essa questão toca fundo na natureza humana, que tende facilmente a inércia, a fim de garantir o cotidiano. Algo na natureza ama a mediocridade.
Outra característica problemática da democracia é sua vocação tagarela, como dizia o Conde de Tocqueville. Nele, as pessoas são estimuladas a ter opinião sobre tudo, e a afirmação de que todos os homens são iguais (quando a igualdade deve ser apenas perante ao tribunal) leva as pessoas mais idiotas a assumir que são capazes de opinar sobre tudo.
E, como dizia nosso conde, Descartes (filósofo francês do século 17) nunca imaginou que alguém levasse tão a sério sua idéia de que o bom senso foi dado a todos os homens em “quantidade” iguais – o que evidentemente é uma mentira empírica. O resultado é que, se você põe em dúvida a capacidade igual entre os homens de ter opiniões, a sensibilidade democrática grita de agonia. Mesmo os homens com diploma universitário de engenharia, por exemplo, se julgam capazes de pensamentos profundos sobre o mundo revelando como a universidade, ao se tornar um fenômeno de massa (como dizia o filósofo espanhol Ortega y Gasset no século 20) criou a ilusão de “opiniões banais” com ares cultos.
Uma coisa que nosso conde percebeu é que o homem da democracia, quando quer saber algo, pergunta para a pessoa do seu lado, e o que a maioria disser, ele assume como verdade. Daí que, no lugar do conhecimento a democracia criou a opinião pública.
Mas talvez a pior coisa da democracia seja o fato de que ela deu aos idiotas a conciência de seu poder numérico, como dizia o sábio Nelson Rodrigues. Em suas colunas de jornais, o Nelson costumava dizer que os idiotas, maioria absoluta da humanidade, antes do advento dad Revolução Francesa e a democracia (que a primeira não criou exatamente porque foi muito mais um regime de terror autoritário), os idiotas perceberam que são em maior número, e de lá pra cá todo mundo passou a agrada-los, a fim de ter a possibilidade de existir (principalmente intelectualmente).
O nome disso é marketing. Todo mundo que pensa um pouco vive com medo da força democrática (numérica) dos idiotas. O politicamente correto é umas das faces iradas desses idiotas.
O filósofo inglês Michael Oakeshott escreveu vários textos criticando as utopias políticas criadas a partir do século 15. Um deles, em especial, “O nascimento do homem-massa na democracia representativa”, dialoga com intuição rodriguiana. Para ambos a democracia sempre dá a vitória aos idiotas porque são a massa.
Oakeshott descreve o nascimento, ainda no Renascimento, de uma “moda” intelectual segundo a qual todos os homens seriam capazes de ser indivíduos. O nascimento da noção de indivíduo no Renascimento italiano já tinha sido apontado pelo historiador suíço do Renascimento Jacob Burckhardt no século 19. O autor suíço chegou mesmo a descrever em sua obra o fato de muitos burgueses pagarerm escritores em condições financeiras ruins para escrever sobre suas vidas, enaltecendo seus “feitos”.
Nas palavras de Burckhardt, a intenção era criar a noção do que hoje chamamos de “ter uma personalidade própria e especial”. Claro que há uma relação importante entre o nascimento da noção do indivíduo e o surgimento da burguesia, a classe que define seu próprio destino pela competência de cada um, e não pela mera herança de sangue.
Com a ruína da sociedade rural feudal, quase imóvel, os burgueses criam o valor da individualidade competente e responsável por si mesma, uma espécie de caso histórico do homem “criador de seus próprios valores” como na utopia nietzschiana do super-homem. Entretanto, quase todos fracassam na empreitada, porque o mundo é sempre hostil á individualidade, que é a fonte de valor para si mesma.
O argumento de Oakeshott é que quase ninguém é individuo de fato (isto é, quase ninguém tem uma personalidade autônoma e ativa, e dói ter uma personalidade assim), por isso a regra é repetir o que a maioria faz, mentindo-se sobre o fracasso da individualidade verdadeira. Ao contrário, Kant, no século 18, que sonhava com uma sociedade de homens cada vez mais maduros (a maioridade kantiana é igual à capacidade de tomar decisões por si só, ou seja, autonomia), Oakeshott suspeitava que tomar decisões por si mesmo era a maldição de poucos.
politicamente correto adora dizer que a democracia é feita de cidadãos conscientes e que todos são capazes de tomar decisões autônomas, numa espécie de kantismo barato. Para Oakeshott, ser um indivíduo implica solidão e inseguranças que a maioria das pessoas simplesmente não suporta e, por isso, desiste. Mas, como a democracia faz a propaganda da autonomia do indivíduo como lastro dela mesma, acaba sendo hábito mentirmos sobre o fracasso da autonomia em escala “política”. Mas, se parasse por aí, menos mal. Oakeshott dirá que todos indivíduos fracassados odiarão os verdadeiros indivíduos, caçando-os pelo mundo porque eles resistem à massificação necessária para a operação da democracia moderna. Ao contrário do que se diz a democracia não opera pela autonomia, mas sim pela massificação crescente das opiniões, como já dissera Tocqueville. Aquele indivíduo fracassado (indivíduo manqué) rapidamente se transformará em anti-indivíduo e “homem-massa”, comprando modelos de personalidade que a mídia vende e seguindo líderes autoritários ou populistas que afirmarão a autonomia para todos – como se a autonomia fosse uma espécie de bolsa-família para toda a população. O indivíduo verdadeiro sofre a perseguição mais descarada, porque ele sim vive a dureza de ter uma personalidade ativa e por isso mesmo acaba sendo um cético com relação às promessas de autonomia para as massas. No fundo, o indivíduo fracassado e o homem-massa invejam a liberdade do indivíduo verdadeiro porque ela lhes parece um luxo. Na realidade são primitivos demais para entender a maldição que é ser indivíduo e a dor que é ser livre sem pertencer a bandos.
O encontro de Tocqueville, Nelson Rodrigues e Oakeshott é evidente: o idiota raivoso fala sempre com força de bando e, na democracia de massa em que vivemos, ele sim tem o poder de destruir todos os que não se submetem a sua regra de estupidez bem adaptada."

Luiz Felipe Pondé in Guia Politicamente Incorrecto da Filosofia 


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